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O Mundão Lá Fora

Atualizado: 5 de abr.






– “Vó, eu tô bem mas daqui há pouco estou saindo da Febem”

Essa frase seria estranha vindo da boca de um adolescente de 17 anos cumprindo medida de internação na Fundação Casa. Seria estranho, pensando num adolescente qualquer, sedento por novas experiências e descobertas. Sedento por liberdade. Mas não no caso de João*. No caso de João, não.

João, que viveu na rua antes do roubo, nos conta sobre uma música que ele escreveu para a avó com esse trecho. Ele não deu ênfase para o que me chamou atenção nas palavras dele: “eu tô bem mas daqui a pouco estou saindo da Febem”. Ao contrapor o ‘estar bem’ à saída da Fundação, algumas denúncias são feitas.

O que a “Febem” garante à João, nesse caso?

Na conversa, perguntamos: – João, como você pensa sua vida fora daqui? Ele refere, sem saber dizer com clareza, que não tem pressa para sair. Lá ele acorda cedo, tem hora para comer, hora para falar, tarefas a serem realizadas, refeições prontas em horários fixos. Ele tem lições de casa a serem feitas e depois cobradas pelo professor, ele tem um cabelo igual ao de todo mundo, um uniforme, um número. João tem tudo, menos o mais importante e mais difícil: a liberdade. Sem liberdade, falta necessidade de escolha. Seu mundo fica mais restrito. Sem liberdade, falta angústia também. João, preso entre paredes institucionais, não precisa pensar no que vestir, que horas acordar (e acordar para fazer o quê?), como arrumar o cabelo, como se apresentar para o outro, como planejar o seu dia, como cuidar da sua casa e de seu ambiente, como cuidar de si. As paredes da lei e da Fundação garantem que João não se angustie, não precise pensar em projetos. Tudo está decidido, tudo está prescrito. Não tem desejo, não tem querer, não tem frustração e nem angústia. No caso dele, onde a questão de sua vida está justamente no ter que cuidar de si, a Fundação cai como uma luva.

Lá, ele era para os técnicos e funcionários, um menino exemplar. Disposto e disciplinado. Fazia tudo que lhe pediam, de bom grado. Adorava ser o primeiro a se oferecer para pegar as roupas na lavanderia e outras tarefas necessárias.

As regras que lá haviam em excesso, não haviam na sua casa. Sua mãe trabalhava exaustivamente, e quando chegava em casa estava cansada, só tendo tempo para dormir. Tanto fazia onde João e seus outros irmãos estavam; se estavam na rua, se dormiam em casa ou na calçada. Ela não tinha tempo para isso, não se preocupava com isso, não se pré-ocupava com isso. João, sedento por olhares externos e limites fora de si, não encontrava isso em seu lar. Para sua mãe, tanto fazia, e a exigência dele ter que cuidar de sua própria existência lhe era difícil e custosa demais. Não conseguia cuidar de si sozinho. Precisava de alguém dizendo quando e como, sem desejo, sem conflito, sem liberdade, sem angústia. Seria ótimo morar na Fundação! Lá não tem erros, nem pisadas de bola. Não para João. A regra era clara, e o que ele precisava era de regras e caminhos claros.

As técnicas da Fundação se angustiavam: – “Mas João, você não pode viver aqui para sempre, a vida é lá fora”. E era justamente isso que assustava, a vida lá fora.

Conversávamos com João: – João, pensemos aos poucos no que fazer no “mundão lá fora”. Mas como? Tem receita? Não, não tem receita. Tem alguém me dizendo o que é pra fazer? Não, não tem alguém te dizendo o que é pra fazer. Tem paredes assegurando que eu não me leve para algum lugar arriscado fora daqui? Não, não tem paredes.

O mundão é assim. Os limites não são prontos e nem rígidos. Os limites vão sendo descobertos a partir do próprio caminhar.

– E é disso que queremos falar com você. É isso que queremos fazer com você. Acompanhar o seu caminhar. O caminho que se faz na caminhada, onde é difícil estar sozinho. Difícil estar sem mãe no lar. Difícil estar sem laços. Seremos seu laço. Seremos acompanhantes. Mas o pé que anda… Ah, João. O pé que anda é seu.

 

Texto de Lívia M. Y. Lascane, Educadora Terapêutica do Programa Refugiados Urbanos

* Nome fictício para preservar a identidade do jovem. 

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