Encontramos Catarina* no Vale do Anhangabaú, como combinado. Ela ainda estava dormindo e resolvemos esperar. Tomamos café, jogamos Uno e damas com outros meninos. Ela acordou, buscou a mochila e partimos para o metrô. No caminho, conversas: “Minha mãe”, “Meus irmãos”, “Minha escola, devo ter repetido o ano”, “Um ano na rua”, “Ana* ensinou a me virar na rua”. Estava um pouco reservada, porém cordial. Na saída do metrô, Catarina apontou pra um prédio e disse: “Eu moro ali!”, “Vou mostrar minha casa pra vocês, vamos?"Nos contou que estudava de manhã e o irmão dela à tarde. Perguntei há quanto tempo ela não ia pra escola; disse que não sabia. Perguntamos se ela queria ir primeiro pra casa ou ao parque, que era o intuito inicial do nosso passeio. Ela disse "pra casa". Estava com saudades dos irmãos, não os via desde o Natal.Atravessamos um viaduto barulhento, umas ruas perigosas e entramos na favela, Pirituba*. Catarina sempre andando na frente e rápido, querendo chegar logo. Ela cumprimentou uma vizinha e viu de longe a casa do padrasto. Pediu para irmos na frente, pois estava morrendo de vergonha.No meio do caminho pediu: “Tio, fica aqui comigo”. Sentei do lado dela e esperamos. Primeiro veio o irmão, Gustavo*, 11 anos. O único de pai e mãe. Abraços carinhosos, saudades, “sentiu minha falta?”. Depois, veio Júlia*, 8 anos. Mais abraços e saudades. Eu e Marina apenas testemunhamos, mas nos emocionamos junto com eles. O irmão estava bravo com ela: “Por que você fugiu?”. E ela, chateada com ele: “Você viu a Cleide* me bater no natal e não fez nada, ficou rindo!”. Ele se defendeu: “O que eu ia fazer, bater na Cleide?”. Entramos numa lanchonete vizinha a casa de Catarina, da mãe de uma ex-atendida do Quixote, que nos reconheceu pela camiseta e iniciou uma conversa.Catarina entrou conosco e comemos risoles. Contou da agressão que sofreu na última vez que voltou, do filho do padrasto. Um soco na boca que a deixou sangrando. As vizinhas da lanchonete ouviram a história, confirmaram a situação e que toda vizinhança soube disso na época. Catarina pagou nossos risoles e saímos da lanchonete.Fomos ao campinho brincar com a bola de vôlei; Catarina, Gustavo e Júlia. Foi uma brincadeira gostosa, entre irmãos. Jogamos queimada. Outros meninos do bairro também apareceram pra brincar. Vimos que o horário já estava quase estourando e nos preparamos pra ir embora. Demos um "tchau" caloroso aos irmãos. Catarina foi abraçar Gustavo, mas ele relutou, revoltou-se com a partida da irmã.Júlia mostrou ciúmes com a relação dos dois e disse: “Só gosta dele…”. Catarina pra compensar deu um abraço gostoso e apertado na irmã. Na volta do campinho, passamos em frente a casa do padrasto, que estava lá. Catarina disse: “Já estou indo Cláudio*”. Ele perguntou: “indo pra onde?”. “Pro centro”, respondeu, “você não quer me dar a chave do apartamento, vocês me batem!”, e saiu com raiva. Marina foi falar com ela. Passei pra ele nosso telefone, falei que víamos Catarina no centro e que estávamos à disposição. Ele disse que ela sempre foi rebelde, mesmo quando a mãe estava viva, que roubou no bairro e deu problema pra ele, e que pediria pra avó buscá-la no centro. Na volta, Catarina não queria papo. Chegamos no Quixote, ela comeu e quis desenhar. Desenhamos como tinha sido o dia e ela pareceu gostar, esboçou um sorriso. Pediu o telefone de casa, que Marina tinha anotado, e passamos o nosso também. Dia intenso, muito intenso. Foi pro Vale e nós pro metrô, pensando, conversando e assimilando tudo.
Pedro, E.T. do Projeto do Quixote.
* Os verdadeiros nomes foram trocados para preservar a identidade dos envolvidos.
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